11/11/2006

Hoje é um belo dia. Acordei bem disposto com o som dos passarinhos do outro lado da janela.
Inspirei o ar matinal com um sorriso rasgado nos lábios e nesse momento apercebi-me que estava perante um dos melhores dias de sempre. Passado pouco tempo aparece a minha mãe no
quarto com um tabuleiro. Nesse tabuleiro estava um prato com duas torradas com manteiga, um ovo estrelado por cima de uma das torradas, bacon e uma caneca de leite com chocolate da Cadbury's. Daqueles não instantâneos. Não podia ser melhor. A minha mãe abriu a janela do meu quarto e uma pomba branca esvoaçou e pousou no meu ombro. Rimos. Parti um bocadinho da minha torrada e alimentei o pombo. Que dia magnífico. Cheio de possibilidades.
Depois de comer, saí da cama e decidi pôr um bocado de música, música é a banda sonora das nossas vidas. Estava indeciso entre o novo album de Mary J. Blige ou um dos mais antigos de Faith Hill. Escolhi o de Faith Hill. Não por ela ser branca, o factor racial não teve qualquer peso na minha decisão, escolhi Faith Hill simplesmente porque ontem já tinha ouvido Mary J. Blige. Com a voz da diva a ecoar na minha cabeça, tomei banho, fiz a pouca barba que tenho, cortei as unhas dos pés, penteei o meu cabelo e vesti-me. Não necessáriamente por esta ordem. Comi o meu almoço. Comi medalhões de porco preto com risotto. Estava sublime.
Preparei-me para sair. Agarrei no meu discman e introduzi a última malha de Justin Timberlake. Ele melhorou muito, antigamente estava demasiado preocupado em ser o novo Michael Jackson. Fico feliz por ele ter encontrado a sua identidade. Aproveito agora para dizer que acredito na inocência do Michael. Ele teve uma infância muito atribulada, podemos até dizer que ele não teve infância. Sempre ocupado com a banda, teve que crescer demasiado rápido. Talvez isso o tenha afectado profundamente a nível psicológico e ele procure agora compensar o que perdeu. Se calhar ele vê a maldade nos homens e prefira dar-se com a pureza das crianças. Seja como for, estava preparado para sair. Estava bem vestido com umas calças de ganga de corte fashion, russas na zona das coxas, uma t-shirt com a imagem do Che e um casaco da Zara. Abri a porta de casa, confiante. Desci pelas escadas, faz-me falta o exercício, cheguei à rua... vi uma flor no chão, não a arranquei, não seria capaz de a matar, mas baixei-me para captar o seu odor. E que bom odor era. O céu está azul, imaculado, a temperatura está amena e agradável, sente-se o cheiro das flores, as abelhas colhem o polen, os cães brincam, as andorinhas dançam nos céus, as pessoas cumprimentam-se alegres e fraternas. Que dia glorioso que está. Adoro viver. Mesmo que tentasse não conseguiria imaginar um dia melhor na minha cabeça.
Vou pontapear cãezinhos, arrancar patas a gatos, decapitar prostitutas, esfaquear sem-abrigos e beber o sangue de bebés.

11/04/2006

A fabulosa vida de Carlos

Carlos era o mais novo de nove irmãos, tal como ele, todos os irmãos se chamavam Carlos. A mãe era submissa e o pai era um alcoólico megalomaníaco chamado Carlos. Eram uma família pobre que morava nos arredores de Almada. Os irmãos de Carlos eram temidos nas redondezas, estavam sempre à porta da escola para roubar mais um boné, ou mais uns trocos. Gente má. Mas Carlos nunca foi como eles. Desde cedo se interessou por pintura, música erudita, filmes europeus. Mas para além dos gostos pessoais, havia uma outra coisa que separava Carlos dos irmãos: vontade de vencer. Mais que tudo, ele queria ser alguém. Queria estudar, ir para o liceu, ir para a faculdade, ter um bom trabalho, e tentar dar à sua família uma vida digna. Mas nada iria correr bem. No sétimo ano foi expulso do liceu devido a um mal-entendido. Dois dos seus irmãos espancaram brutalmente um miúdo do sexto ano enquanto lhe tentavam roubar um tazo com a cara do Petit, daqueles que saem no jornal. O miúdo contou à directora que Carlos lhe tinha administrado tão severo espancamento. A directora enganou-se no Carlos. A mãe deste podia ter dito qualquer coisa em defesa do filho mais novo. Mas ela estava embriagada e com um punho de Carlos Sr. no olho. Aos dezoito anos, Carlos trabalhou, guardando todo o seu dinheiro, incluindo o dinheiro dos almoços para pagar a sua carta de condução. Com a carta ia tentar obter talvez um trabalho como estafeta. Dois anos depois tinha a carta... mas faltava-lhe uma coisa essencial... Um carro. A sua solução estava no estrangeiro. Foi para a Suíça colher morangos e trabalhar como um escravo dezoito horas por dia para receber o suficiente para comprar um carro em segunda-mão. A meio do primeiro mês, perdeu um dedo num acidente de trabalho com uma tesoura da poda. Com o dinheiro para o carro, voltou para Portugal, comprou um Fiat Uno em terceira-mão ao seu irmão mais velho, Carlos. A caminho do centro de emprego, Carlos, que não estava bem habituado a conduzir, entrou numa rotunda em contra-mão, ao ver um bólide a alta velocidade contra ele, tentou virar, mas uma dor excruciante atravessou-lhe a mão que recentemente havia reduzida a quatro dedos. Carlos embateu contra um poste. Um ferro que estava no banco de trás furou-lhe as costas e partiu-lhe a espinha, o carro começou a arder e Carlos sofreu queimaduras de terceiro grau em setenta por cento do corpo. Um transeunte conseguiu resgatá-lo.
Depois de quatro semanas em coma, Carlos acordou. Ficou feliz porque quem estava ao seu lado no hospital era o seu pai. Foi felicidade de pouca dura, o seu pai estava numa cama a morrer. E morreu. Na noite anterior Carlos Sr. tinha discutido com a sua mulher, pregando-lhe duas murraças na cara. Mãe de Carlos, farta da violência e sob o efeito de Jack Daniels, agarrou numa faca e esfaqueou-o trinta vezes. Ainda vivo devido aos efeitos da coca, Carlos Sr. foi levado para o hospital, para o lado do filho. Mas era tarde demais. Coitadinho de Carlos. Tetraplégico, queimado, com úlceras no estômago devido aos dois anos que não almoçou, e sem pai. Mas isto não terminaria aqui. No dia a seguir, ainda no hospital, Carlos recebia uma nova notícia. Tinha um tumor no cérebro, tinha dois meses de vida.

Descansa em paz, Carlos.
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